À primeira vista, Portugal e a Gronelândia parecem mundos opostos: um país atlântico, solarengo e marítimo, e uma ilha árctica, gelada e isolada. No entanto, quando se analisa a fundo a história global e os caminhos do conhecimento, descobrem-se pontos de contacto surpreendentes entre estas duas margens extremas do Atlântico Norte. No Blog dos Portugueses em Viagem, gostamos de explorar não apenas destinos, mas também as histórias menos contadas que os unem. Este artigo revela uma relação discreta mas relevante entre Portugal e a Gronelândia — uma ponte de factos históricos e de interesses científicos, geográficos e geopolíticos que merece ser conhecida. o PRIMEIRO PORTUGUÊS NA GRONELÂNDIAJoão Vaz Corte-Real foi um navegador e cavaleiro da casa régia portuguesa, apontado como o primeiro português a ter explorado o Atlântico Norte, por volta de 1472. Os registos indicam que D. João II recompensou João Vaz Corte-Real com terras na ilha Terceira (nomeadamente as capitanias de Angra e São Jorge), “em razão de serviços prestados numa viagem a uma terra chamada Terra Nova". Apesar de várias referências, não sobreviveram documentos oficiais que descrevam detalhadamente essa expedição que foi mantida em segredo de estado português. Quando João Vaz Corte-Real chegou ao extremo noroeste do Atlântico por volta de 1472, o que encontrou foi ao mesmo tempo, desolador e fascinante. A paisagem natural, a vida animal e, possivelmente, o contacto com povos indígenas, teriam marcado profundamente essa viagem pioneira que antecedeu em décadas a chegada oficial de João Caboto (1497). Ao desembarcar, João Vaz Corte-Real deparou-se com uma costa recortada por fiordes profundos, penínsulas rochosas e enseadas protegidas, perfeitas para abrigo de embarcações em viagens longas e perigosas. Um cenário natural gélido, com uma imponência crua e austera, ainda quase intocada pelo homem europeu. A primeira impressão foi de riqueza marinha sem paralelo. O litoral estava repleto de bancos de bacalhau (uma das maiores reservas do mundo) cuja abundância se tornava evidente mesmo nas águas costeiras. Cardumes densos, facilmente capturáveis com redes e anzóis simples, justificariam rapidamente o nome atribuído nas cartas portuguesas: "Terra dos Bacalhaus". No Canadá a paisagem não oferecia facilidades agrícolas — solos pobres e um clima rigoroso dificultavam qualquer tentativa de colonização imediata. Mas a presença de madeira abundante, águas ricas em recursos e uma costa ideal para a pesca sugeria um potencial económico significativo, sobretudo como entreposto sazonal. É por isso que, mesmo sem fundar colónias permanentes, os portugueses mantiveram interesse estratégico e comercial nesta região até meados do século XVI. Corte-Real regressou com relatos de riqueza piscatória, litoral seguro e clima exigente, o que justifica as recompensas territoriais recebidas nos Açores. O silêncio oficial sobre a viagem deveu-se à estratégia de sigilo da Coroa Portuguesa, que preferia ocultar descobertas não prioritárias face à concorrência internacional. Os filhos de João Vaz Corte-Real, Gaspar e Miguel Corte-Real, também seguiram a carreira de navegadores e participaram em expedições oficiais à Terra Nova, já no início do século XVI, ao serviço da Coroa portuguesa, reforçando a tradição familiar de exploração da região do Atlântico Norte. UMA VIAGEM SECRETAEmbora D. João II só tenha subido oficialmente ao trono em 1481, ele já era uma figura extremamente influente na corte portuguesa desde o final da década de 1460. Como Príncipe herdeiro e sobretudo como Condestável do Reino, D. João teve uma participação activa na governação e, mais importante ainda, no planeamento das explorações marítimas. O seu pai, D. Afonso V, estava muito mais interessado nas campanhas militares em África e na política peninsular, deixando, em muitos momentos, a condução dos assuntos do mar nas mãos do seu filho, então já conhecido pela sua inteligência, secretismo e visão estratégica. A expedição de João Vaz Corte-Real à Terra Nova, em 1472, insere-se nesse contexto. Trata-se de uma viagem envolta em mistério, onde os registos oficiais são escassos, mas com múltiplas fontes indirectas que a comprovam: crónicas nórdicas, mapas anónimos e documentos italianos e flamengos. Este tipo de missão “não-oficial” não era incomum. Portugal desenvolvia uma política de "sigilo estratégico extremo". O próprio Infante D. Henrique já tinha cultivado esta abordagem durante as primeiras explorações ao longo da costa africana. D. João II herdou e refinou essa estratégia, muitas vezes financiando viagens secretas, sem alarde público, para explorar novas possibilidades comerciais e territoriais antes que outras potências europeias tivessem conhecimento. Embora D. João II ainda não fosse rei em 1472, já era o cérebro por detrás de muitas das decisões mais ousadas do reino, sobretudo na expansão marítima. A viagem de Corte-Real deve ser interpretada como parte de uma estratégia paralela de reconhecimento do Atlântico Norte, anterior à corrida pública pelas especiarias, mas já com o olhar atento às possibilidades do outro lado do Atlântico. Uma política de exploração silenciosa, cuidadosamente orquestrada por um príncipe que viria a tornar-se um dos maiores estrategas da História de Portugal, e que vislumbrava que o futuro do país passava não só por chegar à Índia... mas também por tudo o que estivesse por descobrir a Ocidente. A PRESENÇA MISTERIOSA DA GRONELÂNDIA NA CARTOGRAFIA PORTUGUESAO "Livro de Marinharia" de João de Lisboa, datado de cerca de 1514, é uma fonte cartográfica e náutica de grande valor histórico. Este atlas contém não apenas cartas marítimas, mas também tratados sobre navegação, astros e orientação, sendo um testemunho da sofisticação técnica portuguesa no início do século XVI. Em relação ao Atlântico Norte, o atlas inclui cartas onde aparecem regiões identificadas como "Terra dos Bacalhaus" — expressão que, segundo vários estudiosos, pode referir-se à zona da Terra Nova (Newfoundland), descoberta oficialmente por navegadores europeus no final do século XV. A expressão também aparece em outros mapas portugueses da época, como os de Pedro Reinel e Lopo Homem, frequentemente próxima de representações da Islândia e, por vezes, de uma terra alongada que alguns autores sugerem poder ser a Gronelândia, embora sem consenso académico pleno. O nome "Terra dos Bacalhaus" reflecte um conhecimento prático ligado à pesca, mais do que uma presença política ou cartográfica precisa. De acordo com investigações da Biblioteca Nacional de Portugal, da Universidade Nova de Lisboa e do historiador Armando Cortesão, não há prova definitiva de que João de Lisboa conhecesse a Gronelândia propriamente dita, mas a inclusão de territórios do extremo noroeste do Atlântico no seu mapa demonstra que Portugal, desde a viagem de Corte-Real, permaneceu atento ao que se descobria naquela zona. Em particular, o mapa insere esses territórios numa rede de navegação que inclui a Islândia, o mar do Labrador e partes do Árctico canadiano, evidenciando conhecimento surpreendentemente detalhado para o seu tempo. PORTUGAL E GRONELÂNDIA: UMA RELAÇÃO SÓLIDA E DISCRETADurante a Era dos Descobrimentos, entre os séculos XV e XVI, Portugal liderava a exploração marítima global. Apesar de a Gronelândia não ter sido um alvo directo das rotas lusas, os navegadores portugueses acompanhavam atentamente os relatos nórdicos e ingleses sobre o Atlântico Norte. Documentos náuticos preservados na *Biblioteca Nacional de Portugal* e no *Arquivo Nacional da Torre do Tombo* confirmam o interesse de cartógrafos portugueses em terras do norte, incluindo referências à Gronelândia em mapas como o de Cantino (1502). Esses mapas mostram que os portugueses tinham conhecimento da existência da ilha. A influência portuguesa estendeu-se ainda à ciência náutica, que viria a ser fundamental para expedições europeias ao Árctico nos séculos seguintes. Técnicas de navegação como o uso do astrolábio, da balestilha e da cartografia astronómica, desenvolvidas por portugueses, foram adoptadas por exploradores dinamarqueses e holandeses. Investigadores da Royal Danish Library e da University of Copenhagen documentam como a herança náutica de Portugal foi determinante para viagens ao Atlântico Norte, incluindo as primeiras tentativas modernas de mapear a costa da Gronelândia, no século XVII. No século XX, com o surgimento de organizações científicas internacionais, a colaboração entre Portugal e países com jurisdição sobre a Gronelândia, como a Dinamarca, tornou-se mais concreta. Oceanógrafos portugueses participaram em estudos do Atlântico Norte, nomeadamente no âmbito do International Council for the Exploration of the Sea (ICES), partilhando dados sobre correntes oceânicas, migrações de peixes e alterações climáticas que envolvem a Gronelândia. A cooperação académica intensificou-se nos últimos anos, com universidades portuguesas envolvidas em projectos de glaciologia e biodiversidade polar financiados pela União Europeia e coordenados a partir de instituições como o Greenland Institute of Natural Resources. A nível geopolítico, Portugal, como membro da NATO e da União Europeia, acompanha com interesse a crescente importância estratégica da Gronelândia no contexto do degelo do Árctico. As novas rotas comerciais e o potencial energético da região estão a transformar a Gronelândia num actor relevante na diplomacia do Norte. Lisboa mantém diálogo com Copenhaga sobre estas matérias, e diplomatas portugueses têm participado em fóruns como o Arctic Circle Assembly na Islândia, contribuindo para debates sobre desenvolvimento sustentável, direitos indígenas e segurança ambiental. Embora não tenha uma agenda directa no Árctico, Portugal defende uma abordagem multilateral e cooperativa na região. Em termos turísticos, o interesse dos portugueses pela Gronelândia tem vindo a crescer, sobretudo entre viajantes que procuram experiências remotas e contacto com a natureza extrema. Operadores especializados, como os *Portugueses em Viagem*, têm incluído a Gronelândia em expedições para quem deseja conhecer fiordes glaciais, aldeias inuit e fenómenos como o sol da meia-noite. Esta procura representa não apenas um fascínio pela paisagem, mas também um desejo de contacto com culturas resilientes e territórios onde a presença humana é moldada pelo gelo e pela luz. A história comum entre Portugal e a Gronelândia pode não estar escrita em batalhas, tratados ou colónias — mas está presente nos mapas, na ciência, nas ideias que cruzaram oceanos. É uma história de observação, contribuição e respeito mútuo entre margens longínquas. Como em tantas outras partes do mundo, os portugueses não estiveram ausentes, apenas discretos, atentos e prontos a aprender com o que o mundo mais distante tinha para ensinar. Hoje, os laços entre os dois territórios passam por caminhos menos óbvios: ciência polar, cooperação climática, arte contemporânea e turismo de aventura. À medida que os desafios do século XXI exigem colaborações globais, Portugal posiciona-se como um parceiro atento e responsável nas questões que envolvem o Árctico. A Gronelândia, por sua vez, começa a ser olhada não como um espaço periférico, mas como um centro de decisões ambientais e geopolíticas cruciais. A relação entre Portugal e a Gronelândia é um elo que se reforça na medida em que o conhecimento e a consciência global aumentam. E é também mais uma prova de que, no planeta interligado de hoje, mesmo as regiões mais remotas podem ter laços inesperados com a História e o futuro dos Portugueses. nem trump, nem tugas: os INUIT SÃO OS verdadeiros donos da gronelândiaNo extremo norte do planeta, onde o gelo eterno molda a paisagem e as estações extremas determinam o ritmo da vida, habita um povo de resistência notável e sabedoria ancestral: os Inuit da Gronelândia. Adaptados a um dos climas mais rigorosos da Terra, os Inuit desenvolveram uma cultura profundamente enraizada no respeito pela natureza, baseada na caça de subsistência, no conhecimento das marés e na leitura precisa do gelo e do vento. Vivem maioritariamente em pequenas comunidades costeiras, onde os trenós puxados por cães, os caiaques tradicionais e os iglus coexistem com tecnologias modernas e novos modos de vida. São os verdadeiros donos da Gronelândia e vamos escrever mais sobre eles aqui no Blog dos Portugueses em Viagem. Segue-nos. Até onde és capaz de ir? |
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