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Quem não viaja, não conhece o mundo, e quem não conhece o mundo, não o entende. A História recente da Europa revela um facto relevante: os grandes ditadores europeus do século XX (Salazar, Franco, Mussolini e Hitler) partilhavam um traço comum que raramente se discute. Nenhum deles viajou. Nenhum conheceu o mundo para lá das fronteiras do próprio medo. Todos governaram sociedades complexas com uma visão estreita, fechada no provincianismo e na desconfiança do outro. Compreende porquê no Blog dos Portugueses em Viagem. António de Oliveira Salazar, o homem que dominou Portugal durante quase cinco décadas, foi talvez o exemplo mais extremo. Não atravessou oceanos, nem pisou África, nem viu a Ásia, que tanto influenciou o destino português. A sua única deslocação fora de território nacional foi uma breve ida a Badajoz, em Espanha, um gesto simbólico de cortesia diplomática, não de descoberta. Daí em diante, governou impérios coloniais sobre os quais nunca lançou o olhar. Decidiu políticas em Angola, Moçambique ou Timor a partir de um gabinete em Lisboa, sem compreender a vida, as culturas, nem a humanidade das pessoas sobre as quais legislava. Essa cegueira, nascida da imobilidade, transformou-se em dogma: o império não era uma realidade viva, era uma abstração de poder e medo. Francisco Franco e Benito Mussolini partilharam o mesmo isolamento ideológico. O primeiro trancou-se na Espanha fascista que criou, quase sem contacto com outras nações. O segundo, apesar da retórica imperial, nunca se misturou com o povo que dizia libertar. Ambos cultivaram um nacionalismo que dependia da ignorância do mundo exterior. E Adolf Hitler, que prometeu ao povo alemão um “espaço vital”, também o concebeu sem jamais compreender a diversidade humana que existia para lá das suas fronteiras: viajou muito pouco, e sempre como estratega ou ocupante, nunca como observador ou aprendiz. Comparar esses líderes com figuras como Barack Obama ou Justin Trudeau revela o que a viagem, o contacto e o cosmopolitismo podem fazer. Obama viveu na Indonésia, estudou no Havai e em Harvard, e viajou extensivamente. Essa exposição formou nele uma visão do mundo baseada na interdependência, na empatia e nos direitos humanos, valores que o levaram ao Prémio Nobel da Paz. Justin Trudeau cresceu num ambiente multicultural e percorreu o Canadá e o mundo antes de liderar o país. Ambos compreenderam que a diversidade não é uma ameaça, mas uma força civilizacional. E, num contraste histórico fascinante, Ho Chi Minh, que venceu militarmente os Estados Unidos, foi também um homem de viagens. Viveu em Londres, Paris, Moscovo, Pequim, absorveu culturas e estratégias, conheceu o adversário, compreendeu o ser humano antes de o enfrentar. As suas vitórias, a independência do Vietnam, nasceu em muito do conhecimento intrinseco que tinha pessoalmente do adversário. Nomes como Mário Soares, Natália Correia, Paulo e Miguel Portas, demonstram como o gosto por viajar pode ser uma forma de pedagogia política. Soares, cosmopolita e humanista, percorreu a Europa e o mundo antes de ser Presidente, absorvendo ideias de liberdade e democracia que ajudou a implantar em Portugal. Paulo Portas, enquanto jornalista e mais tarde Ministro dos Negócios Estrangeiros, fez das viagens um instrumento de diplomacia económica e de abertura internacional. Miguel Portas, pelo contrário, usou as suas viagens (ao Médio Oriente, ao Norte de África, à Ásia) como campo de observação e reflexão sobre desigualdades e identidades. Em 1950, com 26 anos, Natália Correia viajou para os Estados Unidos, o que resultou num dos seus primeiros livros: “Descobri que Era Europeia”. Ao longo da sua vida fez várias viagens e tinha contacto com círculos intelectuais internacionais. A curiosidade que movia, estes e alguns outros líderes nacionais, tornou-se antídoto contra o dogmatismo: todos compreenderam que o mundo é diverso e interdependente. Em diferentes espectros ideológicos, contribuíram para uma democracia portuguesa mais madura, aberta e consciente do valor do diálogo global. A ausência de viagem entre os ditadores europeus do século XX é, portanto, mais do que curiosidade biográfica, é uma metáfora política. O imobilismo físico refletia a estagnação moral. Quem nunca atravessou fronteiras reais dificilmente atravessa outras fronteiras. Salazar, Franco, Hitler e Mussolini fecharam-se em geografias mentais tão rígidas quanto as suas fronteiras políticas. Viajar é sempre um ato de humildade. Obriga-nos a reconhecer o outro, a ver o que há de comum e o que há de diferente, a relativizar a própria verdade. É também um exercício de cidadania: o primeiro passo para compreender os direitos humanos é ver a humanidade em contextos diversos. Os líderes que viajaram aprenderam; os que não viajaram, impõem. A lição é clara e urgente. Um mundo governado por quem não viaja, por quem não é do mundo, é um mundo fracassado. Um país conduzido por quem nunca saiu do gabinete é um país condenado à ignorância e ao medo. Viajar, física, cultural e espiritualmente, é o melhor antídoto social contra o autoritarismo. E talvez a História de Portugal tivesse sido outra se Salazar, em vez de apenas ir a Badajoz, tivesse seguido até Luanda, Bissau ou Dili para ver os rostos reais daqueles sobre quem decidiu o destino sem jamais os conhecer, destroçando com a sua incompetência o Império que tinha herdado, lançando-o numa Guerra perdida à nascênca, fora de tempo e geopolíticamente absurda. |
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