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Há histórias da História que parecem esquecidas, escondidas nas margens dos grandes impérios. Uma delas aconteceu na Índia, onde o Império Português, senhor dos mares, e o Império Mughal, dono das terras e das rotas do interior, se cruzaram num encontro improvável. Um império navegava pelas correntes do Índico, o outro mandava nas caravanas do Ganges. Entre ambos ergueu-se uma relação feita de curiosidade, comércio e choque cultural — uma dança diplomática entre canhões, especiarias e fé. Sabe mais no Blog dos Portugueses em Viagem. Quando os portugueses chegaram à Índia, no início do século XVI, o poder Mughal ainda estava a consolidar-se. Em 1526, Babur, descendente de Tamerlão, fundou o Império Mughal após a Batalha de Panipat. O seu neto, Akbar, o Grande, transformaria o império num mosaico de povos e religiões, com uma corte refinada e uma administração moderna. Enquanto isso, os portugueses já controlavam o mar: tinham Goa, Cochim, Diu e Malaca, e os seus navios navegavam de Lisboa a Nagasáqui. Dois mundos poderosos, tão diferentes quanto complementares, acabaram por se encontrar. O primeiro ponto de contacto foi o comércio. Os Mughais produziam têxteis, seda e especiarias em quantidade e qualidade que fascinavam os mercadores europeus. Os portugueses, com as suas naus, traziam prata, cavalos e armas — e um sistema de controlo marítimo, o cartaz, que regulava as rotas do Índico. Em cidades como Surate, Diu e Hooghly, estabeleceram-se entrepostos onde se misturavam línguas, moedas e religiões. Bengala, em especial, tornou-se o elo mais dinâmico: sob o patrocínio de Akbar, o capitão português Pedro Tavares obteve permissão para fundar o porto de Hooghly, no atual Bangladesh, abrindo uma nova fronteira luso-mughal. Mas não era só o comércio que unia estes mundos. Akbar, interessado em filosofia e religião, convidou jesuítas de Goa para a sua corte em Fatehpur Sikri, por volta de 1579. Vieram com livros, retratos e uma Bíblia em latim. Ali, entre monges franciscanos e sábios muçulmanos, discutia-se teologia, astronomia e a natureza de Deus. Era o primeiro diálogo inter-religioso formal entre o Islão e o Cristianismo no Oriente. Os missionários portugueses regressaram maravilhados com a tolerância do imperador, e levaram para Goa notícias de um soberano que governava com sabedoria rara. Claro que nem tudo foi diplomacia e admiração mútua. O poder Mughal não via com bons olhos os abusos de alguns corsários portugueses, que praticavam pirataria e tráfico de escravos no Golfo de Bengala. Em 1632, o imperador Shah Jahan (o mesmo que mandou construir o Taj Mahal) sitiou e destruiu o forte português de Hooghly, terminando um capítulo tenso, mas deixando intactas as influências mútuas. Essas influências perduram até hoje. Palavras de origem portuguesa — pão, balde, sabun (sabão) — continuam no vocabulário bengali. As ruínas de igrejas em Bandel e Diu testemunham a passagem de missionários. E nas crónicas Mughais, os portugueses aparecem ora como “firingis” destemidos e engenhosos, ora como mercadores teimosos, que dominavam o mar mas nunca deixavam de procurar novos portos. O entrelaçamento dos dois impérios não foi uma guerra nem uma aliança: foi um encontro de conveniência e curiosidade. Os Mughais tinham o ouro, os portugueses tinham os navios. Um controlava as terras, o outro os mares. E juntos teceram uma teia de trocas, influências e histórias que moldaram a Ásia moderna. Hoje, quando viajamos com os Portugueses em Viagem por Goa, Diu, ou pelo delta do Ganges no Bangladesh, caminhamos sobre as sombras desse passado. Nas aldeias à beira-rio, nos mercados de especiarias e nas igrejas esquecidas entre palmeiras, o legado desse encontro ainda respira. Porque, no fundo, o império português e o império Mughal não se enfrentaram, encontraram-se, e por um breve momento na História, o mar e a terra falaram a mesma língua. |
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